quarta-feira, 16 de abril de 2014

Sugestão de Leitura: As ideias conservadoras: Explicadas a revolucionários e reacionários


terça-feira, 15 de abril de 2014

A tradição da grande melodia






They understood that wisdom comes of beggary.
W.B.Yeats, “The seven sages”


            A publicação brasileira de um livro como As ideias conservadoras explicadas a revolucionários e reacionários, de João Pereira Coutinho, é de grande importância para o nosso mundo intelectual não porque o autor seja meu amigo (afinal, somos obrigados a fazer full disclosurede nossas relações em homenagem à honestidade intelectual que nos une), mas sim porque o seu assunto, mesmo que pareça cifrado ou distante demais do nosso cotidiano, é essencial para que se entenda as engrenagens políticas que estão em jogo, seja no aspecto nacional como internacional. O tópico sobre qual é o significado destas palavras repletas de insinuações maliciosas – conservadorismoconservadorreacionáriofascista – chegou a tal ponto de incompreensão, para não dizer estultice, que a mera leitura de algumas páginas deste pequeno e elegante volume é uma lufada de ar fresco em um debate que não existe mais – e, se alguma vez existiu, é certeza que já começou viciado.

            João Pereira Coutinho tem um estilo claro, direto que, sobretudo, não banaliza o assunto – muito pelo contrário, ele faz algo improvável para um livro de apenas 108 páginas: contribui com novas ideias, faz o leitor pensar em novas perspectivas e, mais, o retira daquela zona de conforto da qual a suposta “nova direita” tupiniquim sempre cai, constituída no binômio maniqueísta do “nós” contra “eles” quando, na verdade, todos estão no mesmo barco e ignoram se rumam ou não a um naufrágio.

            Todavia, ao mesmo tempo, o livro apresenta um problema, cuja culpa não é sua ou de seu autor, mas sim do leitor que irá encarar suas linhas. A pergunta que ficará para este sujeito será a seguinte: E o que eu tenho a ver com isso? Porque o livro não dialoga – e nem é mesmo a sua intenção primeira – com o público brasileiro, sequer o lusitano, apesar de ser escrito justamente na língua de ambos. O seu público é o anglo-saxão – e isso não é uma má notícia. Pelo contrário: Pereira Coutinho nos apresenta a um mundo que todos nós deveríamos ter acesso – e que foi infelizmente negado por causa de anos de lobotomia em uma cultura da estupidez institucionalizada. E quando falo de “mundo anglo-saxão”, não estou a falar de The Smiths, Echo & The Bunnymen, Lennon & McCarthy e Monty Phyton; falo do filósofo Roger Scruton, do cientista político Anthony Quinton, do grande Michael Oakeshott – e do honorável Sir Edmund Burke (1729-1797), considerado o pai do conservadorismo e, no caso de Pereira Coutinho, como bem observou Reinaldo Azevedo na orelha do livro, o seu Virgílio nos labirintos da ideologia política.

            E quem foi Burke, este homem que sempre esteve do lado certo das batalhas corretas, mesmo quando tudo levava a crer que o mesmo lado já estava perdido – e que é constantemente mal-tratado no Brasil pelos escroques de abismo, pelos libertários analfabetos em qualquer espécie de leitura e pelos esquerdopatas que só conseguem ver o mundo pelo prisma de Foucault e Marx?

            Edmund Burke sempre procurou por aquilo que o poeta irlandês W.B.Yeats chamava de “a grande melodia” (the great melody), expressão extraída do poema The Seven Sages (e que também foi utilizada pelo melhor biógrafo burkeano, Conor Cruise O´Brien, em livro de mesmo título). A busca por esta “grande melodia” permite ver Burke não só como o principal representante de um “conservadorismo” político (o que nunca foi a sua intenção), mas também como um estadista que refletiu sobre o próprio homem em situações históricas que estavam além do seu controle.

O exemplo histórico recorrente é a Revolução Francesa – objeto de seu escrito mais célebre, Reflexões sobre a Revolução na França (1791) –, mas também pode ser estendido para outros eventos, como a Revolução Americana (da qual Burke foi um de seus primeiros defensores), a perseguição política contra os católicos na Irlanda (fato que foi vigorosamente denunciado por ele em várias sessões no Parlamento Inglês) e o pedido de impeachment contra Warren Hastings, então governador-chefe da Índia quando esta era colônia do Império Britânico no final do século XVIII (Burke afirmava que esta era a denúncia pela qual queria ser lembrado na posteridade).

O que dá unidade a esta disposição de ação de Burke não é uma ideologia política (como costumamos chamar o “conservadorismo”), mas uma visão particular da natureza humana, alimentada pela observação empírica, pelo estudo dos clássicos e pela assimilação de escolas filosóficas que amarravam as pontas do passado e do então presente. É justamente ela que dá coerência à sua obra, de caráter aparentemente não-sistemático, pois tem raízes na denúncia constante dos abusos de poder, seja de quem for: do rei da Inglaterra, dos administradores coloniais, dos funcionários eclesiásticos, dos companheiros de Parlamento, e, como parece ser o caso da Revolução Francesa, dos filósofos e ideólogos do movimento jacobino.

O “problema da natureza humana” na obra de Burke é visto aqui não como uma questão que permite uma resposta definitiva a certos assuntos da filosofia, mas sim como um problema que estimula outras perguntas que, dessa forma, constituem o corpus de um pensamento que não se deixa petrificar em um sistema lógico ou em uma ideologia política, como também pretende ser uma descrição aproximada de como o ser humano pode se comportar na sociedade política de seu tempo.

Apesar de não ser uma obra que possa ser classificada como “sistemática”, i.e., uma hierarquia de raciocínios encadeados que mostram uma explicação lógica de axiomas e enunciados a respeito do que seria o real, o tema que une os escritos de Burke, como um rio subterrâneo, é o do problema da natureza humana percebido como uma tensão constante e dinâmica entre os princípios estruturais antropológicos e as circunstâncias mutáveis da História. Segundo a expressão de Ortega y Gasset, um problema é sempre “a consciência de uma contradição” – e, no caso de Burke, esta “contradição” é palpável em cada um de seus textos; aqueles que foram concebidos para serem lidos como tratados filosóficos (como Enquiry into the origin of our ideas of the sublime and the beautiful e o já famoso Reflexões) ou os que têm uma intenção mais “pragmática”, como os discursos proferidos no Parlamento ou a correspondência trocada entre as mentes mais eminentes da Inglaterra, como Samuel Johnson, Oliver Goldsmith e Joseph Peirce. Tal “contradição” é a busca de Burke, como filósofo e como estadista, em encontrar um equilíbrio e, o mais importante, umaordem que não seja estanque para o funcionamento da sociedade política e seu relacionamento com os indivíduos; o equilíbrio e a ordem fluída são uma forma de descrever como Burke percebia essa tensão inerente na estrutura da real e que, influenciado por seus estudos de Aristóteles, permeava a vida política na dinâmica da multiplicidade na unidade, em que os princípios estruturais antropológicos pelos quais um ser humano deveria se orientar – a experiência religiosa, os valores morais, o respeito pelo próximo, a hierarquia da ordem sobre a liberdade, a existência de uma consciência que se relaciona com o mundo objetivo, etc. – entravam ou não em choque com as mudanças súbitas dos acontecimentos históricos, como as reformas políticas ou as revoluções, sempre movidos pela necessidade ou pelo acaso.

É este o norte da visão de estadista de Edmund Burke – e que, justamente por ser um problema que acontece dentro do e com o próprio homem, torna-se também um estudo de antropologia filosófica e de comportamento humano. Desde os seus primeiros escritos, quando pretendia publicar em 1757 o seu An Abridgment of English History, o jovem Burke observa que há uma constante nas ações humanas – a capacidade de que o homem pode ter pensamentos e atitudes racionais, mas que, se não for educado corretamente nesses “sentimentos morais” (uma expressão de Adam Smith), poderia cair no “irracionalismo” disfarçado de racionalidade, quando se trata, na verdade, de uma abstração, de uma “especulação metafísica”, conceito que, como o irlandês adorava usá-lo com intenção irônica, indicava uma atitude de fuga da concretude da realidade cotidiana, dando origem aos “filósofos, sofistas e economistas” contra os quais o Burke maduro lutaria na eclosão da Revolução Francesa.

Entre uma etapa e outra da sua vida, ele manteria uma coerência notável em suas preocupações filosóficas e morais, sobretudo porque nunca perdeu de vista o fato de que a natureza humana – matéria-prima da política e da História, das quais tirava o seu sustento – era uma contradição sem uma resposta fácil. De certa forma, seu corpus abarca os tópicos principais da antropologia filosófica, daestética, passando pela política, até a moral e, por incrível que pareça – para alguém que não gostava muito de usar a expressão – a metafísica, sintetizando tudo isso em uma peculiar filosofia política que tangencia em uma filosofia da História.

Os exemplos são variados. Na estética, podemos citar o seu clássicoEnquiry into the origin of our ideas of the sublime and the beautiful (1757), que influenciaria Immanuel Kant em sua concepção sobre o belo e o sublime, e que argumenta que o homem é capaz de compreender a beleza do mundo ao seu redor se for corretamente educado para isso. Essa educação é um aperfeiçoamento dos “sentimentos morais” que já existem dentro dele e que o orientam para o seu desenvolvimento na sociedade onde vive e onde também pode contribuir com a transmissão dessa mesma beleza aos seus semelhantes. Este raciocínio teria seu complemento prático no momento em que Burke se volta para a vida política da Inglaterra e percebe que o seu papel como estadista é justamente educar não só o povo, mas principalmente os seus representantes, i.e., os membros do Parlamento e os intelectuais que os rodeiam; esta “educação cívica” consiste em transpor para a política o aperfeiçoamento dos “sentimentos morais” que antes era do âmbito estético para a ação humana racional e que deve fazer o possível para o bem comum da sociedade. É neste momento que a própria obra de Burke cresce de forma exponencial em termos de qualidade, com seus discursos e cartas, todas peças antológicas do pensamento político inglês do século XVIII.

Aqui, as amostras também são abundantes. Podemos citar e classificar a reunião de seus escritos de abordagem política em três partes. A primeira é a crítica constante e consistente dos problemas sociais que afligiam o Império Britânico, então governado pelo rei Jorge III; Burke percebe que a tensão da multiplicidade na unidade que há no ser humano pode ser estendida às instituições políticas que, para manterem a sua permanência, precisam ser constantemente reformadas; ora, o que ele diagnostica no Império naquele momento histórico é a petrificação de um status quo e a manutenção de um poder pusilânime que, para atingir tal resultado, usa de expedientes coercitivos, como o aumento de taxas e a criação de leis que perseguem explicitamente credos religiosos. Entre esses problemas que Burke apontou com precisão no Parlamento, estão nada mais nada menos que a Revolução Americana e a perseguição contra os católicos da Irlanda. Em discursos históricos como Thoughts on the Cause of the Present Discontents (1770), em que Burke não hesita em afirmar que o Rei pretende criar um “gabinete secreto” para mandar na Inglaterra a seu bel-prazer; e no Speech on Conciliation, em que, já em 1775, ele antecipa que os colonos americanos ganharão a guerra (e, mais, dá razão a eles), percebe-se que o estadista irlandês vê o ser humano em cada uma de suas circunstâncias históricas, procurando preservar o que é novo e o que já foi provado pela História como algo que deu certo, em um delicado equilíbrio entre a reforma e a tão temida revolução.

É justamente essa palavra – revolução – que unirá o segundo e o terceiro grupo de escritos políticos de Burke. Em ambos, ele vê tal evento – que transformará o eixo da História, da política e da própria constituição moral do homem, se não for adequadamente compreendida e até mesmo impedida – como um mal que o verdadeiro estadista deve evitar. No seu léxico, uma revolução significa uma ruptura, algo que foi impensado, de forma irracional, apesar do discurso que a justifica com as vestes de uma pretensa racionalidade científica e, claro, metafísica (em seu sentido ironicamente burkeano). Além disso, Burke vê a experiência de uma revolução como algo que vai completamente contra a própria natureza humana – que, habituada a aprender e a aperfeiçoar os seus “sentimentos morais” pelo estudo da História, se orienta pela prudência(phronesis) de querer e buscar a justa medida entre dois opostos e que descobre a circunstância favorável para a harmonia política na sociedade. Com isso, entende-se perfeitamente porque ele fazia questão de denunciar os abusos de Warren Hastings, então governador-maior da Índia, que, por meio de torturas, roubos e até assassinatos, ia contra tudo o que deveria ser considerado “humano”, e sua conexão oculta com a Revolução Francesa que, apesar de seus chamados à “liberdade, fraternidade e igualdade”, tinha dentro de si os germes do Terror que Burke previu com assustadora vidência em suas Reflexões. Estes dois fatos históricos, aparentemente díspares, mostram também como o estadista percebia as conexões secretas da História e como tinha plena consciência de que testemunhava um momento em que o mundo onde vivia passava por uma mudança radical e sem volta, na qual o delicado equilíbrio em busca de uma reforma política que amarasse a prudência e as necessidades humanas talvez não existisse mais.

Se o segundo grupo de escritos políticos – dedicados às denúncias contra Hastings – e o terceiro – escritos no calor da hora da Revolução Francesa – são o que tornou Edmund Burke famoso na Europa, temos de perceber também que há um outro grupo de textos, que mistura tanto as preocupações políticas como asfilosóficas-metafísicas (agora como o pensamento do “sentimento moral religioso”) e que dão a unidade a este corpus aparentemente desarticulado. São os escritos da pós-Revolução Francesa, em que Burke, já próximo da morte, medita sobre o destino do que aconteceu na França e, envolvido em uma polêmica intercontinental com pessoas renomadas como o pastor Richard Price e Thomas Paine, tem de se justificar perante o público a respeito das próprias idéias. Esta é a intenção de escritos como An Appeal from the New to the Old Whigs (1791), A Letter to a Noble Lord (1795) e, sobretudo, as Letters from a Regicide Peace (1795), em que Burke chega à conclusão de que a Revolução Francesa, junto com o Terror, foi um acontecimento inevitável no curso da História e que não havia outra maneira do ser humano (e, em especial, o ser humano político, o estadista que o próprio Burke acredita estar representando no final da vida) viver aquele momento senão aceitando-o como parte de um plano divino. Dessa forma, a tensão entre os princípios estruturais e as circunstâncias históricas chega a uma síntese em que o homem enfim é visto como alguém completamente dependente de uma Providência e que a política talvez seja uma arte do fazer o possível dentro das limitações de um acaso que não se sabe bem se é um verdadeiro acaso. O “problema da natureza humana” em Edmund Burke desemboca para uma espécie de enigma que, se não chega a uma soluçãoracionalista e sim apenas racional, é porque o irlandês percebe, dentro do seu percurso de vida, que a sociedade não se fundamenta sobre bases abstratas e sim através de uma “desconfiança” que talvez exista alguma coisa no real que estáacima da razão e que nenhuma revolução feita pelas mãos dos homens, seja política, histórica, social ou antropológica, poderá apreender na sua totalidade.

Assim, apesar de ser considerado por muitos como um dos primeiros representantes do “pensamento conservador”, Edmund Burke se apresenta como um estadista que vai muito além de categorias e classificações ideológicas. O grande diferencial de sua obra – e que o coloca no mesmo patamar de grandeza dos filósofos da sua época, como Adam Smith e Jean-Jacques Rousseau – é a visãoproblematizadora da natureza humana, percebida aqui como o ponto de passagem entre a antropologia filosófica clássica (de moldes greco-judaico-cristãos) e a antropologia filosófica moderna (fundada nas descobertas de John Locke, David Hume e Adam Smith – o chamado Iluminismo Britânico, como bem classificou Gertrud Himmelfarb em Os caminhos para a modernidade).

Esta mudança de eixo analítico entre a antropologia filosófica clássica e a antropologia filosófica moderna é um tema secreto, porém fundamental para se entender os embates modernos intelectuais e existenciais dos nossos tempos – no Brasil de Dilma Rousseff e dos Black Blocs, no Portugal da União Européia ou na Inglaterra de David Cameron. Burke encarna o paradigma do pensador que capta esta mudança de percepção no exato momento em que ela surge. E mais: conforme observou o mesmo Pereira Coutinho em sua formidável tese de doutorado, Política e Perfeição, que exige publicação imediata no nosso país, Burke se apresenta como defensor de uma primeira natureza humana, fundamentada sobre princípios que fazem parte da própria estrutura da realidade, e que, ao mesmo tempo, dialogam em uma tensão constante com uma segundanatureza humana, calcada em costumes históricos particulares e em circunstâncias de necessidade política. Esta tensão entre ambas as naturezas humanas permite-nos perceber uma pluralidade de valores e de decisões que não podem ser catalogadas facilmente em sistemas ideológicos, algo que, como o honorável irlandês diria, seria contra o exercício da política na intenção de uma vida harmoniosa em sociedade.


Felizmente, o livro de Pereira Coutinho nos relembra constantemente que existem esses princípios – e que eles são, junto com as circunstâncias que enfrentamos no nosso dia, o que movimentam a política verdadeira que esquecemos que existe há tanto tempo. Mas talvez o termo correto não sejapolítica – e sim algo mais pomposo e também nobre: sabedoria. É com ela, tão adormecida entre os nossos supostos líderes, que enfim aprendemos que só conseguimos dominá-la se enfim soubermos encontrar a “grande melodia” das nossas próprias vidas, a melodia que surge com a humildade e, retornando ao inesquecível poema de Yeats, com a pobreza que nos faz concluir que “aqueles que persistirem em se opor a esta poderosa corrente nos assuntos humanos parecerão resistir aos próprios decretos da Providência e não tanto aos meros desígnios dos homens”, conforme as palavras finais de um Burke que vislumbrava o seu próprio fim. A “poderosa corrente” pode ser uma revolução ou a mudança definitiva que sempre estará fora do nosso controle; mas também pode ser a imperfeição que é o nosso paraíso e que forma as notas principais desta melodia da qual queremos fazer parte. E é a isto que os honoráveis João Pereira Coutinho e Edmund Burke nos ajudam a brindar alegremente.

Fonte: http://martimvasques.blogspot.com.br/2014/04/a-tradicao-da-grande-melodia.html?spref=fb

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